O semáforo ainda estava vermelho quando percebi o cartaz no muro descascado: três anúncios sobrepostos, cada um alterando a existência do anterior. Por baixo de uma promoção de pizza, surgia a sombra de um show sertanejo que, por sua vez, encobria a oferta de um curso de inglês vencido há meses. Ali, naquela esquina, o passado não era história; era realidade alterada em tempo real. E foi nessa esquina de cola, papel e parede que me dei conta: talvez a nossa memória funcione exatamente assim, um palimpsesto urbano.
Dias atrás,
no arrasta de uma rede social, tropecei numa frase sobre um experimento: a
decisão de agora define se a luz se comportou como onda ou partícula ontem. Não
entendo de física, mas a ideia me perseguiu. Se um gesto tardio pode redesenhar
o destino de um fóton que já partiu, então nossas escolhas de hoje talvez
também reescrevam episódios que jurávamos encerrados, não com efeitos
especiais, mas com a edição silenciosa que fazemos quando revisitamos
lembranças.
Recordo as
idas à roça quando criança: chuva fina, cheiro de terra, pés descalços
afundando na lama enquanto eu, menino, praguejava contra aquele suposto pior
dia. Anos depois, revendo a cena, descubro que ali surgiram os contornos que
fundamentariam meu primeiro texto digno. O fato permaneceu; o significado, não.
Talvez por
isso a saudade seja menos arquivo e mais software em atualização constante.
Sempre que abro a pasta “infância”, encontro arquivos renomeados: a bronca que
doeu converte‑se em gesto de cuidado, a timidez na festa vira charme discreto.
Nada mudou, exceto o ângulo do meu olhar, e o olhar, aprendi, é um programador
de linhas temporais.
Alguns temem
mexer no passado, mas toda lembrança é narração escolhida. A foto de família
nada revela sobre quanto tempo levou até as crianças aceitarem posar ou sorrir.
Captura apenas o instante congelado. Cada revisita, porém, cria legenda
inédita: cabelos que mudaram, roupas fora de moda, rostos que já partiram. Do
mesmo registro brotam novas histórias. Talvez o presente, em silêncio,
reescreve o ontem.
O sinal ficou
verde, o trânsito seguiu, e o cartaz da esquina já recebia outra propaganda. Talvez,
em poucos dias, eu passe pelo mesmo lugar e não reconheça a promoção de pizza.
Tudo bem. Cada camada é um retrato legítimo do instante congelado.
O sentido
final? Depende de quando e de como escolhemos olhar.