Backups do Infinito

Há arquivos que não salvamos, mas vivemos tentando zipar a eternidade em 24 horas.

Talvez haja uma nuvem onde os "e se" estejam disponíveis. Um drive que só a alma acesse, quando se faz upload de silêncio.

Quem sabe, a intuição seja um download não autorizado de algo que a gente não compreende.

Não sei se lembro ou se invento. Acho que faço backups daquilo que me escapa.

Backup do Infinito

Há um silêncio que só a madrugada conhece. Não é ausência de som, é ausência de distração. Nele, escuto notificações que não chegam, mensagens que nunca foram escritas, vozes que talvez nunca tenham falado. E me pergunto: onde ficam guardadas as coisas que não vivemos?

Vivemos cercados de backups: do celular, do computador, da nuvem, da memória externa. Tentamos salvar tudo: fotos de um sorriso que já não lembramos por que surgiu, conversas capturadas no calor do instante e arquivadas no frio da distância, ou músicas que um dia embalaram o que agora já não pulsa.

Mas e aquilo que não foi dito? E o que quase foi vivido? Onde ficam armazenadas as palavras que engolimos, os abraços que não demos e os caminhos que deixamos de seguir?

Talvez exista um servidor secreto no tempo. Um drive onde os “e se” continuam vivos, dançando como partículas incertas entre o agora e o nunca. Talvez a alma, essa abstração que chamamos de nossa, também tenha um sistema de backup, não para restaurar o passado, mas para lembrar quem fomos antes de esquecer.

Às vezes, em meio a um clique distraído ou num olhar perdido no reflexo de uma tela, acessamos esse backup. No entanto, não sabemos dizer se estamos lembrando do que aconteceu ou do que poderia ter sido. Mas sentimos, talvez isso baste.

Fico pensando no tempo, do alto de sua última versão, zombando da nossa pressa, enquanto nós, cronômetros ansiosos, insistimos zipar em 24 horas o que só cabe na eternidade.

Talvez o tempo espiritual, esse que não se mede, mas se percebe, esteja rodando em segundo plano, como um aplicativo silencioso, esperando a chance de dizer: “Uma nova atualização está disponível”.

Quem sabe um dia a ciência consiga traduzir isso em código. Ou talvez já tenha traduzido, e o que chamamos de intuição seja apenas um download autorizado por algo que não compreendemos.

Enquanto isso, sigo aqui, digitando no escuro, salvando mais uma vez aquilo que nunca quero perder: a dúvida, a busca, e essa estranha sensação de que o agora não dá conta de tudo o que eu carrego.

Por fim concluo: eu faço backups. 


Entre louça, roupa e vinho

Fred e Sofia tinham um pacto silencioso sobre a divisão das tarefas domésticas: ele esquecia, e ela lembrava por ele.

Naquela noite, porém, Sofia decidiu que não ia lembrar. Pelo contrário, ia esperar para ver até onde ia a amnésia seletiva de Fred.

Sentou-se no sofá, abriu um vinho e ficou observando. O caos se instalava lentamente, como uma experiência sociológica.

A pia transbordava de pratos. O cesto de roupa suja parecia um manifesto contra a civilização. E Fred? Sentado à mesa, lendo um artigo sobre comportamento organizacional corporativo.

Sofia pigarreou.

— Interessante como certos indivíduos se adaptam ao descontrole ambiental sem demonstrar sinais de incômodo.

Fred levantou os olhos.

— O que foi, amor?

Ela sorriu.

— Nada. Só analisando como você está confortável nesse experimento sobre o conceito de entropia doméstica.

Fred franziu a testa.

— Entropia?

— Sim. A tendência natural ao caos. Parece que, se ninguém intervir, o universo — ou melhor, a pia — caminha para um estado de desordem máxima.

Ele bebeu um gole de vinho, tentando ganhar tempo.

— Você tá querendo dizer que… era minha vez de lavar a louça?

— Estou dizendo que a própria noção de “vez” é uma construção social que precisa ser desconstruída. 

Fred suspirou balbuciando: inferno! 

— Sofia, se você queria que eu lavasse a louça, era só falar.

— Interessante. A mulher pede, o homem executa. Poderíamos chamar isso de um modelo fordista da divisão doméstica?

— Ah, pronto. O jantar virou um debate sobre os meios de produção.

Ela riu e estendeu a garrafa para ele.

— Não, Fred. O jantar já foi. Agora só sobrou a louça.

Ele sabia que estava encurralado. Levantou-se, pegou o pano de prato e foi até a pia.

— Tá bom, Sofia. Mas, enquanto eu lavo, você pode pelo menos estender a roupa?

Sofia fez uma pausa dramática, bebeu um gole de vinho e respondeu:

— Eu até poderia… mas será que o papel da mulher como “gestora da lavanderia” não precisa ser questionado?

Fred fechou os olhos e respirou fundo.

— Tá bom, filósofa. Mas amanhã sou eu que escolho o tema do seu vídeo no YouTube.

— Fechado.

E assim, entre louça, roupa e vinho, Fred e Sofia equilibraram mais uma noite: roupas jogadas ao chão do quarto. 

O Ponto no Centro do Círculo

Era uma manhã comum, ou deveria ser. O café esfriava na xícara enquanto eu girava a colher em círculos, assistindo ao movimento da espuma se dissipar lentamente. O mundo ao redor seguia seu ritmo previsível, passos apressados na calçada, conversas murmuradas, mensagens piscando na tela do celular. Tudo parecia se mover dentro de um ciclo sem fim.

Mas havia algo naquela manhã que não se encaixava.

No canto da mesa, um guardanapo rabiscado, esquecido, exibia um círculo com um ponto no centro. Um símbolo simples, mas inquietante. Passei os dedos sobre o desenho, sentindo a textura do papel, foi como se aquilo contivesse um um mistério, um augusto segredo, que eu já conhecesse, mas nunca antes decifrara.

O ponto era um começo ou um fim? O círculo o protegia ou o aprisionava?

Peguei o lápis e redesenhei aquele traço com mais precisão. O ponto fixo no meio da curva perfeita, a forma mais simples e, ao mesmo tempo, a mais completa e complexa: justa e perfeita. Pensei no que ele poderia significar: o homem no centro da criação, a busca pelo conhecimento, o equilíbrio entre ordem e caos, a iniciação. 

E então, me ocorreu: quantos de nós passamos a vida sem nunca tocar esse centro?

Nos movemos todos os dias dentro de limites invisíveis: obrigações, rotinas, expectativas. Repetimos gestos, toques e palavras, giramos em torno de ideias conhecidas, sem jamais ousar atravessar a fronteira do círculo. Como se tivéssemos preparo suficiente para encarar o que há no meio, o mistério silencioso que espera.

Olhei ao redor. As pessoas seguiam suas trajetórias,marchas, inconscientes do símbolo ali diante de mim. O centro não é um limite, mas um portal.

Talvez seja esse o verdadeiro trabalho: encontrar o ponto, reconhecer sua presença e saber que ele sempre esteve lá. O caminho não está fora, mas dentro.

Terminei o café, dobrei o guardanapo e o guardei no bolso.

O mundo continuava o mesmo. Mas agora, eu sabia.

O círculo protege, mas o ponto chama.

O melhor amigo do homem

O cão?
O gato?
O ChatGPT?

De lobos e algoritmos, todo mundo tem um pouco

Sempre se debateu: quem domesticou quem? 

O cachorro, esparramado no sofá como se pagasse o aluguel, não parece muito interessado na resposta. Ele levanta a cabeça com aquela elegância desleixada, só para lembrar: "Tá na hora do meu petisco, servo humano." E lá vai o dono, antes do próximo latido, pronto para cumprir sua função na cadeia alimentar moderna: garçom canino.

Mas a cena tem mais um personagem. No canto da sala, a voz de uma inteligência artificial decide entrar no jogo: "A ração está acabando. Deseja fazer um pedido?" O aparelho é direto, eficiente, e ligeiramente agressivo, como quem diz: "Se eu não lembrasse, sua incompetência deixaria o pobre animal passar fome."

Enquanto o pet reina no sofá e a máquina organiza a vida, o homem tenta não se sentir um estagiário na própria casa. "Não esqueça que tem episódio novo da sua série", avisa o assistente digital. "E leve a coleira amanhã, caso queira manter alguma dignidade": alerta novamente o assistente virtual ao piscar luzes em cores diferentes.

O dono, agora mero executor de ordens caninas e tecnológicas, se resigna. A hierarquia da casa é tão clara quanto um contrato de operadora de celular.

Naquela noite, ele se joga no sofá, tentando relaxar. Na TV, um documentário sobre os primórdios: um homem, uma fogueira e um lobo selvagem. Ele ri sozinho. "Como isso virou... isso?" pergunta, olhando para o cachorro que está, literalmente, de barriga para cima.

O cão responde com aquele olhar que mistura amor e desprezo. A voz digital não perde a chance de provocar: "Eu prefiro não opinar sobre assuntos existenciais."

E lá está ele, sentado, olhando o quadro: o cachorro que domina o sofá, a IA que controla sua agenda e ele mesmo, o elo mais fraco na cadeia do progresso. Quem realmente está no comando? 

O cão tem o conforto. A máquina tem os dados. E ele? Ele tem contas para pagar, perguntas demais na cabeça, e o leve pressentimento de que está sendo domesticado.